O AMEX dos desesperados


Mais um dia que se vai. Mais uma exaustiva jornada para João Brasileiro. A subida íngreme não chega a desanimá-lo. Pára, pé ante pé, degrau baixo, degrau acima...levanta a cabeça para se certificar que está quase em casa. "- Só mais uns passos!", pensa.
Quase sempre de cabeça baixa, continua subindo...a iluminação fraca, aqui e acolá registra seu vulto quando passa. O cheiro da terra húmida contrasta com o do café quentinho, "da hora" que sai dos barracos. Gente que sobe...gente que desce...."-...noite, João!.......-"- noite, compadre !" 

- Oi meu amor! Senta aqui ! Você deve tá muito cansado !
- Oi, minha vida! Pera aí, deixa eu respirar um pouco !



Todas as manhãs, lá pelas cinco, ao despertar da aurora, João sai de casa; um modesto barraco no alto do Vidigal. Com sua calça de fustão linhoso velho, muito limpa e esticada a ferro de carvão (carinho de mulher amada), camisa branquinha feito porcelana, ele desce o morro mais uma vez. Com a esperança da gente simples dessa imensa terra maltradada, judiada pelos que não conhecem a miséria e ainda a desfrutam, vaga pelas calçadas do centro da grande cidade, pé ante pé, em seu lento passo de longas e exaustivas caminhadas, enfrentando filas, preenchendo formulários, o que faz com grande sacrifício, mas com a fé do homem simples, pensando em sua prole e em sua amada. 

João Brasileiro é homem simples, criado no morro, cidadão honesto e orgulho do pai, pedreiro de profissão como ele. Não teve a oportunidade de se instuir; arrimo de família, desde cedo se viu obrigado a ajudar no sustento da casa.

- Graxa ! Graaaaxaaa ! ... posso engraxar seu sapato "dotô" ? 

Vida de moleque...pipa no alto, peão na roda, bola de couro no pé, de gude no triângulo ... "APAGA A LUZ!!!"... e joaozinho voltava prá casa com a lata vazia.

Os tempos de moleque do morro se foram. Hoje João tem uma prole prá dar sustento...uma mulher bela, castigada pelo sofrimento, a carestia, o que se vê em seu semblante perdido, de esposa dedicada que ama o seu homem e tanto o admira, pelo marido amoroso, pai dedicado, cidadão correto, honesto e sério que é.
- Tá tudo bem, mulher ?
- Mais ou menos !
- Desembucha, ô xenti !
- O Carlinhos tá com febre de novo !

Enquanto escuta a mulher, se levanta do sofá velho, poído, enquanto sua mão ajeita o pedaço de retalho que cobre as marcas do tempo. Faz cara de quem tá muito cansado; a fadiga dá lugar à preocupação. Vai ao berço do seu menino; mão na testa; semblante de piedade, amor e dor. 

- Por que não levou o menino no "dotô" do posto, mulher ?
- Levei, meu amor! Desci o morro debaixo dessa chuva e acho que foi isso que piorou o estado dele.
- Medicou o menino ?
- Não ! Só tinha um enfermeiro. Disse que faltava tudo no posto, mas me deu uma receita pronta, daquelas deixada assinada pelo médico, prá pegar naquela farmácia que tem lá no largo.
- Aquela que dá remédio de graça ? 
- Ehhh, mas tá fechada há mais de semana e ninguém sabe dizê purque.

João, calado como é seu feitio, com o olhar perdido, ainda acaricia a sua criatura. Passou a noite em claro, do lado do berço. Não desgrudou os olhos do menino, à noite toda. 

É manhã! Lá vai João Brasileiro, mais uma vez ! Já se passaram 3 meses e nada ... absolutamente NADA!

É noite...O tempo tá ruim, hoje...chove muito. A subida dessa vez parece mais íngreme. João fadiga a subir. A terra molhada, muita lama e faz frio.

João tá ansioso para saber do seu menino...se melhorou...tem esperança que a febre tenha baixado.

- Como é que ele tá, mulher ?
- A febre aumentou e hoje até vomitou !

Estranhamente João não reage. Sentado no sofá, tira os sapatos molhados enquando olha para o pedaço de jornal que usou para cobrir um buraco na sola. Não consegue tirar os olhos daquele bocado de papel molhado, onde vê uma foto do presidente Bolsonaro com os braços aos céus comemorando sua vitória, junto com a mulher e os filhos, todos de joelhos à frente de Edir Macedo, bispo da Igreja que João frequenta. Ainda está magoado e sem entender porque o pastor o humilhou tanto da última vez, quando disse que não tinah o dinheiro do dízimo.

Nessa hora, João recorda as promessas de campanha de Lula e de Bolsonaro, da sua esperança de que tudo iria mudar. Pensa no sonhos que teve de poder dar aos seus filhos a educação que lhe foi negada...boa saúde e um futuro melhor.

Enquanto tira sua marmita da mochila, seu olhar vago passeia pelas paredes do barraco. Sem esboçar muita reação, pensa, olhar perdido...sua mulher o entreolha com carinho, mas não gosta do que vê.

- Mulher, me prepara um café !
- Tá bom, querido...tô indo.

João levanta, vai até a geladeira, uma velha "Hotpoint" que achou largada no depósito de onde trabalhava. Dentro, só um litro de leite passado da data de validade...uma banana e a sopa do dia anterior.

Volta pro sofá e liga a TV. Tem o olhar fixo naquelas imagens que parecem hipnotizá-lo.

Levanta, vai até o quarto, pega seu menino e abraça com o carinho e a ternura de pai amoroso e preocupado. Sua mulher o pega pelo braço..."- deixa o menino comigo, meu amor!", diz Darlene com voz meiga e carinhosa. Senta no sofá e descansa mais um pouco, Vou preparar o café.

Enquanto continua olhando aquelas imagens de mulheres lindas, lanchonetes com sandwiches gigantescos, lanchas, carros maravilhosos e gente bonita, começa a bater um cigarro na caixa de fósforos manchada de banha. 

Na TV, um comercial de luxo prende sua atenção. Tantas coisas bonitas...tanta gente com saúde, roupas, perfumes, casas que João nunca entrou. O comercial da AMEX continua, enquanto João, pacientemente aguarda seu café.

- Um cafezinho...um cigarro e um bom sono!!!...pensa...- Amanhã minha sorte vai mudar...vou conseguir, tenho fé e certeza.

Sua mulher o chama, aflita. A febre do menino subiu...parece que tá muito alta...o garoto se lamenta de dor e chora. 

João continua ali, sentado no sofá, olhar perdido no horizonte...já não pensa mais...espera pelo seu café...quer fumar seu cigarro e colocar a cabeça no lugar.

- CADÊ ESSE CAFÉ MULHER ???, grita, pela primeira vez em todos esses anos de casamento
- Meu amor, me desculpa....O GÁS ACABOU !!!

João se levanta com toda fúria...vai até a gaveta e passa a mão no seu revolver calibre 38, herança do irmão policial morto em um tiroteio contra traficantes.

Quando sai de casa, o comercial do AMEX está chegando ao fim.

Ninguém percebe quando uma voz doce e suave de mulher, diz: NÃO SAIA DE CASA SEM ELE !


FIM